Em busca da epifania perdida - 2ª Parte

Leia a 1ª Parte deste texto em Luz de Luma, yes party!

James Joyce e Marcel Proust
Quando jovens, Proust e Joyce escreveram vários livros, alguns só publicados post mortem. Por melhores que fossem, eram apenas parte de sua preparação inconsciente para as futuras obras-primas. A "Recherche" (Em busca do tempo perdido) veio antes de "Ulysses". Seu primeiro volume, "No Caminho de Swann", foi publicado em 14 de novembro de 1913, às expensas do autor. Só quatro dos sete volumes da obra saíram em vida de Proust. O último apareceu em 1927.

A "Recherche" pode ser grosseiramente descrita como uma autobiografia ficcional. Algo nascido sob o signo de uma ambiguidade que leva à bipartição (Caminho de Swann/Caminho de Guermantes, por exemplo); mas uma bifurcação que, em vez de representar maniqueísmo, gera uma espécie de dialética, com a qual se busca recuperar o tempo desperdiçado e também criar algo de novo: o romance de resgate do tempo perdido.

As etapas desse romance, cuja construção o leitor testemunha, são as da biografia do narrador que se sucedem a cada volume: "No Caminho de Swann", a infância na pequena Combray; em "A sombra das moças em flor", a adolescência na vida mundana; o mergulho na inversão sexual em "Sodoma e Gomorra"; as desilusões em "A prisioneira"; a perda amorosa em "A fugitiva"; e em "O tempo reencontrado", contra o pano de fundo da Primeira Guerra Mundial, a conclusão de que só a arte pode nos devolver o tempo perdido, com seus privilegiados instantes de felicidade.

A larga trajetória do narrador proustiano é percorrida não no plano da ação externa, mas de uma contínua ação psicológica, que além de cercar cada ato de uma vasta rede de relações imediatas e remotas, indica a cada momento que é no subsolo, e não na superfície, que está a essência daquilo que devemos buscar. Essa concepção do essencial, mais os sólidos conhecimentos de Proust nos campos da música e da arquitetura, fazem de seu romance uma construção inimitável. Vistos relativamente do ângulo de cada observador, os personagens adquirem uma desafiadora complexidade. Repetições e reiterações tendem a desorganizar o conjunto, mas as simetrias mantêm a coerência, enquanto os planos circulares enfraquecem as forças dispersivas. Apesar do gigantismo, das digressões não raro desanimadoras, a "Recherche" é um livro internamente organizado, cujo final nos leva de volta exatamente ao ponto de partida.

Joyce fez quase tudo ao contrário de Proust. Jovem, procurou impregnar-se da sobriedade flaubertiana, enquanto Proust procurava inspiração em Ruskin. A objetividade francesa é plenamente visível nos contos inaugurais de "Dubliners" ("Dublinenses"), publicado em 15 de Junho de 1915, depois de rejeitado por vários editores; e aparece diluída no livro seguinte, o romance autobiográfico "Portrait of the artist as a young man" ("Retrato do artista quando jovem"), de 1917. Publicado em 22 de fevereiro de 1922, quadragésimo aniversário de Joyce, "Ulisses" ainda paga tributo à objetividade, na medida em que a vida interior de seus personagens passa primeiro pela vida material cuidadosamente descrita. Mas a sua estética inspiradora vem de inesperadas fontes cristãs e conceitos de filosofia moderna.

"Ulysses" é a "Odisséia" retomada - não recontada - em termos modernos e com forte incidência humorística. Na epopéia de Homero, o herói viaja dez anos de volta para casa, após o final da guerra de Tróia. No romance de James Joyce esse tempo é compactado em um único dia 16 de junho de 1904 (o dia em que conheceu Nora, sua mulher; o Bloomsday, o dia de Ulysses-Leopold Bloom, anualmente celebrado por milhares de admiradores em todo o mundo)

Joyce despreza o enredo tradicional: os episódios que dominam as divisões da "Odisséia" reaparecem no "Ulysses" como que reexpostos, reinterpretados numa clave frequentemente cômica; mas estão meio soltos entre si, não avançando propriamente para um fecho narrativo.

Ao contrário dos personagens da "Odisséia", os de "Ulysses" são dublinenses comuns, às voltas com miúdos problemas do cotidiano. Ulysses é Leopold Bloom, não um rei, mas um judeu pobre, que bate pernas pela cidade tentando angariar anúncios para um jornal de segunda. Condenados ao silêncio pela sua própria condição social, as criaturas de "Ulysses" recebem de seu criador a dádiva de uma voz própria. Joyce chegou ao requinte de escolher, para cada capítulo, um instrumento narrativo diferente - diálogo, monólogo, perguntas e respostas - com o que expôs também a sua moderna compreensão do valor da linguagem. No "Ulysses" as pessoas vulgares adquirem grandeza poética, abrigam simbólos e vêm seus pequenos feitos se tornarem significativos. É o tributo de Joyce à utopia.

Em "Stephen Hero", o escritor irlandês escreveu "Pense nos seus olhares para aquele relógio com os movimentos de um olho espiritual que procura ajustar sua visão a um foco exato. No momento em que consegue o foco, o objeto fica epifanizado". Essa passagem mostra como, apesar das diferenças, Joyce e Proust se tangenciam. Ambos pareciam dotados de um terceiro olho, com o qual podiam ver o que já de mais inimitável e rico no fundo do eu. Com a amplitude de uma grande angular, o olho interno de Proust vê a existência tecida por fios inumeráveis. O de Joyce, concentrado como um laser, abre caminho verticalmente até onde o essencial possa ser sinônimoo de epifania, como ele chamou essas súbitas manifestações de espiritualidade capazes de nascer até mesmo na "vulgaridade da linguagem ou do gesto".

A descoberta de que a arte pode não apenas revelar, mas também nos premiar com desconhecidas riquezas, foi a grande conquista dos dois;e é o núcleo de seu legado ao século que ajudaram a modelar.

BloomsdayPara constar: Todo dia 16 de Junho é “Dia de Bloom”, evento literário dedicado a homenagear Leopold Bloom, protagonista do livro “Ulysses” de James Joyce.

Simultaneamente em vários países acontecem os festejos do livro, considerado um marco na literatura mundial e que narra acontecimentos ocorridos inteiramente no dia 16 de junho de 1904, pelas dezenove ruas da cidade de Dublin.

No Brasil não seria diferente e várias livrarias e editoras organizam palestras e apresentações em prol de referenciar o protagonista de "Ulysses", único livro além da bíblia que tem um dia que se dedica à homenageá-lo.

No Twitter, logo pela manhã, a hashtag #bloomsday foi parar no topo dos trend topics da Irlanda, seguida por #ulysses e tuiteiros transformaram cerca de 900 páginas do livro em mensagem de 140 caracteres - um dos perfis responsáveis em dar o ponta pé inicial foi @11ysses - Stephen Cole, jornalista da Nasa, idealizador que teve essa ideia de adaptar Joyce à era do Twitter.

10 comentários:

  1. Luma,

    É inegável a grandeza de ambos - mesmo ssem jamais te-los lido. Lembro de uma vez, com Ulysses nas mãos, na biblioteca do colégio onde estudei, perguntar a bibliotecária se a leitura era tão difícil quanto diziam. Me olhando nos olhos, ela respondeu, com uma ponta de desdém, que eu não havia conseguido ler nem mesmo Grande Sertão: Veredas. Desisti no ato, mas, agora, estou propenso a, um dia, dar uma merecida chance a Joyce.

    Beijo.

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  2. @Luciano, não pode de antemão impor obstáculos. Pode ajustar o sua opinião conforme for lendo.

    Lembre-se que a leitura precisa ser digerida - Quantas vezes relendo um texto, observamos algo que ainda não tínhamos enxergado?

    No mais, ano que vem, quem sabe? Estará você como eu, feliz por ser festejado um livro que te cativou, mesmo diante da impertinência dos preguiçosos em ler e pensar?

    Beijus,

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  3. Ô, Luma! Que bebê fofo! Nessa fase que eu tô, uma foto dessa me derrete toda...

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  4. "(...) o romance do resgate do tempo perdido.", perdido? O princípio romântico de quem, alimentado pela veia literária, alimenta a nostalgia. Se naquele tempo, de grande pensadores, já estava presente de modo linear e constante a busca pelo que foi grandioso e já posto que "só a arte pode nos devolver o tempo perdido" (perdido?), por que diabos não continuamos essa busca hoje? Onde estão nossos filósofos, nossos músicos, nossos artistas? Hoje teria muito mais sentido, já que passamos por este corredor negro. Nisto que vivemos, na música, na arte, na literatura, as luzes foram apagadas pela tv, pela Internet mal manipulada e pela preguiça. Talvez a última seja mais consequência que causa.

    Comparar autores era um dos meus trabalhos preferidos na faculdade. O que rompia o tesão era o limite de caracteres, ou melhor, já que o curso não era pra formar jornalistas, o limite de laudas. O curioso é que por mais antagônicos que sejam os autores, sempre, sempre há uma ponte... Uma similaridade, uma verossimilhança... Joyce com sobriedade flaubertiana... O realismo insistente de Gustave Fluabert com todos aqueles detalhes crus da Bovary que marcou época e foi parar nos tribunais. Uma palavra liga à outra, uma época liga à outra... a França... e vc aqui pra nos fazer compreender isso.

    Os grandes pensadores têm ligações, sejam contemporâneos ou não, tenham dialogado (ainda que monossilábicos) ou não. Já viu que tem disponível no YT um vídeo de um diálogo entre Chomsky e Focault? É pra assistir sentado, dando pausas, com uma canecona de café na mão. Um prazer de discussão, ainda em preto e branco.

    Quem dera no Brasil o Blooms Day tivesse a mesma merecida repercussão que teve em outras terras, não é?! Mea culpa; eu não sabia do que se tratava antes de ler um resuminho de notícia da Folha, ainda bem que vc me salvou! Nem dá pra acreditar que vc existe, fala, anda e (obrigada!) escreve essas belezas pra gente! E de graça! rs!

    Aqui pra nós, com nossos gênios brasileiros... Uma vez tive que comparar o Graciliano com o Rosa. Só podia ter 2 laudas... Digamos que foi bom enquanto durou :)

    Bj, Luma!

    Michelle

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  5. (apaguei o comentário e postei de novo com correções dos erros grotescos pra não enfeiar seu espaço ;) - olha o respeito!)

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  6. @Michelle, não sabia do seu trabalho comparativo e que está em "estado interessante". Entendi bem? :=)))
    A questão do tempo é porque sempre nos situamos como se estívessemos no último tempo - como se o tempo em que vivemos fosse o mais produtivo... essa penúltima geração viveu um tempo perdido, sim! Pois muito se apostava no futuro e pouco se fazia no presente. Tal era a letargia, principalmente nos países do primeiro mundo, que as coisas arrebentaram agora, não somente com a crise financeira, mas também uma crise filosófica, Por isso tantos questionamentos para a derrubada de vários conceitos impostos pela "terceira ordem" - as várias religiões invadiram a vida privada das pessoas - "Ao se fixar nas diversas formas de 'Deus' e no que há após a morte, pessoas se distraem da vida" (A. C. Grayling) - autor de "The Good Book: A Humanist Bible" - um bom livro :) que traz uma ótica diferente do evangelho, sob o olhar dos vários filósofos que percorreram o mundo.
    Vou procurar pelo diálogo entre Chomsky e Focault. Ainda não assisti.
    Obrigada pelo carinho, Mi!

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  7. Luma, é sempre um grande enriquecimento te ler!

    Eu no meu Blog, opto por uma sedução apenas, por um instigar o olhar poético do leitor, nào me aprofundo, pois o intuito lá é despertar um sentimento, fazer uma provocação... que se for olhada com atenção será algo que abre portas para infinitos mundos.. seduzir a normalidade das diferenças sexuais ou melhor das igualdades sexuais entre os seres e mostrar a liberdade por um segundo que seja... são propostas secundárias.. há dias que posto e sinto, consegui! Consegui a sinergia que eu quero, e outros não.. na receita, musica,imagem,mensagem, cor, som e ritmo.. que é uma Missão particular minha. Espero que me entenda nisto, já que sinto que consegues me ler além de mim e do meu perfil na net.
    Aqui é algo mais requintado que preciso sim integrar em mim!
    Adorei seu comentário ai em cima em reposta a leitora Michelle, e a visão do "esquecimento da realidade"é sempre bom ver que mais pessoas percebem ilusão e a queda do pensamento humano atual... mesmo após tantas revoluções artísticas e sociais!
    Mas existem vozes feito a sua! Que engrandecem o descoberto positivo e ainda propagam mais e mais Luz ( ... de Luma! )
    És para mim uma profetisa!
    Este teu post ( proust! ) ficou poderoso!
    Bjus de Luz!

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  8. Oi, Luma!

    Acho que só agora entendi a coisa do tempo. Vou ter que reler o post qualquer hora pra absorver mais.

    Não, Luma. Meu bebê nasceu e tem 3 meses. É o segundo. Então, em vez de dizer "qualquer paixão em diverte" ando mesmo é na fase "qualquer bebê me derrete", hahaha!

    Bj!

    Michelle

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  9. Oi Luma!! Vim exercitar meu cérebro! Era uma boa leitora, virei uma preguiçosa. Quero reverter o quadro, bjs

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  10. @Luma, com certeza. No ano passado reli Martin Eden, e o achei bem mais interessante - e mesmo compreensível... Quem sabe no ano que vem ;)

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